Lei que garante moradias acessíveis

A partir de janeiro de 2020, construtoras e incorporadoras deverão disponibilizar apartamentos acessíveis em todo o País, conforme demandas específicas. Secovi-SP e entidades parceiras do setor elaboram e lançam, ainda este ano, cartilha para orientar empreendedores sobre as novas regras

Entra em vigor, em 27 de janeiro, a regulamentação do artigo 58 da Lei Brasileira de Inclusão (Lei n° 13.146/2015), a LBI, objeto do Decreto Presidencial nº 9.451, assinado em 26 de julho de 2018. Trata-se de uma grande transformação na vida dos portadores de necessidades especiais, com impacto direto em um dos principais setores econômicos do País: o imobiliário.

O decreto torna obrigatória a acessibilidade em todas as novas unidades residenciais, excetuando os imóveis cobertos pelo artigo 32 da LBI, referente às Habitações de Interesse Social (HIS), que já contam com regramento específico. A partir de 27 de janeiro de 2020, portanto, as incorporadoras e as construtoras deverão protocolar seus projetos para aprovação considerando todos esses requisitos.

No texto, fica estabelecido que 100% das unidades devem ser projetadas prevendo a possibilidade de adequação posterior. Ou seja, devem possuir características construtivas que permitam – a partir de alterações de layout, dimensões internas ou quantidade de ambientes – a adaptação para uma unidade internamente acessível, sem que sejam afetadas a estrutura da edificação e as instalações prediais. Nesse caso, a legislação prevê que a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida, ao adquirir um imóvel na planta, possa requerer à incorporadora ou à construtora que a unidade seja entregue totalmente acessível, sem nenhum custo adicional. O pedido, porém, precisa ser feito por escrito, antes do início das obras.

Para os empreendimentos que adotarem sistema construtivo que não permita alterações futuras, tais como alvenaria estrutural, paredes de concreto, impressão 3D ou equivalentes, a regra determina que 3% do total de apartamentos sejam projetados com as características da unidade acessível, independentemente de haver demanda posterior.

As duas possibilidades são vistas como positivas e podem trazer ganhos para a sociedade e para o mercado, na avaliação de Carlos Borges, vice-presidente de Tecnologia e Sustentabilidade do Secovi-SP. “São condições adequadas, pois, em ambos os casos, atende-se o consumidor com demandas específicas”, afirma. O artigo 58 da LBI lista também as adaptações construtivas que deverão estar disponíveis para escolha do requerente de acordo com suas necessidades, como puxador horizontal na porta do banheiro, barras de apoio no box e na bacia sanitária, torneiras com acionamento por alavanca ou sensor, fita contrastante para sinalização de degraus e registros, bancadas, lavatórios, quadro de energia, interruptores e tomadas com altura adequada a pessoas com nanismo.

“O decreto regulamentado foi redigido pelo Ministério dos Direitos Humanos, em parceria com entidades do setor imobiliário, e representa um significativo avanço em relação ao atendimento da LBI e rumo à arquitetura inclusiva”, complementa Borges.

A arquiteta Silvana Cambiaghi, mestre em acessibilidade pela Universidade de São Paulo, especialista em desenho universal e presidente da CPA (Comissão Permanente de Acessibilidade da Prefeitura de São Paulo), comemora a obrigatoriedade. “A medida marca uma nova maneira de morar”, diz. Desde a infância, ela utiliza cadeira de rodas e, após uma viagem à Europa na década de 1990, decidiu trazer o conceito de acessibilidade para o Brasil.

Silvana lembra que, antigamente, os apartamentos eram naturalmente acessíveis, com menos cômodos e espaços maiores. Porém, há cerca de duas décadas, os cômodos diminuíram e multiplicaram-se, tornando muitas unidades inacessíveis para os portadores de necessidades especiais. “Esse decreto traz um retorno à habitação de qualidade”, reitera.

Arquitetura inclusiva

“O avanço neste tipo de reflexão certamente influenciará a forma de projetar e de construir edificações”, opina a arquiteta urbanista Adriana Levisky, membro do Conselho Deliberativo da regional São Paulo da AsBEA (Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura) e sócia titular do escritório Levisky Arquitetos – Estratégia Urbana.

Adriana explica que o conceito de adaptabilidade trazido pela legislação abre um grande campo de investigação e qualificação na construção civil. A adaptabilidade dos espaços e o conceito de caráter extremamente sustentável, segundo ela, serão temas compreendidos e aplicados por toda a cadeia da construção. “Contratantes, projetistas, arquitetos, urbanistas, engenheiros estruturais e de instalações prediais, usuários e investidores terão de se debruçar sobre este assunto, revisitando os modelos de habitar tão intensamente e criativamente dinamizados no mundo contemporâneo.”

A intensificação do adensamento populacional em ambientes urbanos e o visível envelhecimento da população mundial também estão inseridos na necessidade de se observar a arquitetura inclusiva com outros olhos. Pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgada no ano passado, mostra que um em cada quatro brasileiros será idoso em 2060. Em 2039, o número de pessoas acima de 65 anos irá superar o de crianças com até 14 anos. “Essa situação vem nos apresentando rapidamente novas demandas, novas soluções ergonômicas, novas formas de cuidado, de oferta de serviços, de utilização e adaptação dos espaços existentes. Enfim, todos estes fatores irão necessariamente afetar as práticas de projetos, produtivas, econômicas, tecnológicas, de consumo e de responsabilidade social e ambiental na construção civil, em especial no mercado imobiliário”, comenta a arquiteta.

A preocupação com a matriz etária brasileira, que deve ser equivalente à europeia em 2050, é mais um motivo para se reforçar a atenção com a arquitetura inclusiva, defende o vice-presidente do Secovi-SP. “Mesmo as pessoas que não são portadoras de necessidades especiais estão envelhecendo e, eventualmente, vão precisar de uma cadeira de rodas para deslocamentos, por exemplo. Por isso, estamos incentivando a mudança para uma arquitetura inclusiva com gradualismo e para que possamos caminhar futuramente para apartamentos visitáveis”, destaca Carlos Borges, enfatizando que o setor está trabalhando para equilibrar as questões econômicas e os direitos inquestionáveis dos portadores de deficiência e necessidades especiais.

Para Silvana Cambiaghi, a arquitetura inclusiva remonta à melhoria da qualidade de vida para todos, independentemente de suas particularidades. “O artigo 58 veio atender às necessidades de quem não é considerado o homem médio padrão, ou seja, os obesos, idosos, gestantes, cadeirantes etc.”

Orientar é preciso

A partir de um entendimento entre o Ministério dos Direitos Humanos e o setor imobiliário, representado por um grupo de trabalho formado por representantes de Secovi-SP, Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), AsBEA (Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura), SindusCon-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo) e CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção), começou a ser desenvolvida uma cartilha com o intuito de orientar o mercado sobre a aplicação do conceito de acessibilidade na incorporação imobiliária. Inédito no mercado, o material será lançado em dezembro deste ano.

“A Lei não mexe com as edificações existentes. Aplica-se somente aos projetos protocolados para aprovação a partir de 27 de janeiro”, enfatiza Carlos Del Mar, advogado e membro do Conselho Jurídico do Secovi-SP, do SindusCon-SP e conselheiro da CBIC, ao pontuar a importância da cartilha para esclarecer este e outros pontos. Como exemplo, o advogado cita situações práticas que serão abordadas no trabalho. “A cartilha vai sinalizar as modificações que ocorrerão em todo o processo, como mudanças no Memorial de Incorporação, na Convenção de Condomínios, no Memorial Descritivo da Obra e no Manual do Proprietário”, pontua.

A vaga de garagem acessível é um dos pontos importantes da legislação e também será tratada na publicação. O texto da Lei prevê que 2% das vagas sejam reservadas para veículos transportando pessoas com deficiência ou baixa mobilidade. “Você pode ter vagas de uso comum ou vinculadas. O portador de necessidades especiais terá direito de trocá-la, e isto tem reflexo na Convenção de Condomínio, pois a Lei dá a esse morador o direito de requisitá-la”, explica o conselheiro. Nesse caso, uma vaga deverá ficar sob administração do condomínio, que terá de fazer essa cessão temporária para quem necessitar de ajuda no embarque ou desembarque. “A Convenção do Condomínio precisa ter essa regra muito bem definida e caberá ao síndico ou ao administrador gerenciar essa situação”, cita Del Mar.

Carlos Borges ressalta que a ideia da cartilha é realmente tratar as questões do cotidiano e incentivar as empresas a adotarem uma nova visão. “Somos absolutamente favoráveis à incorporação definitiva da acessibilidade nos nossos projetos. Entendemos que o caminho escolhido foi bastante razoável no aspecto econômico. Este é mais um passo para aquilo que chamo de arquitetura inclusiva”, finaliza. «

Unidade internamente acessível

Nos empreendimentos com unidades adaptáveis, o adquirente poderá escolher, dentre os itens listados no Anexo I do decreto, aqueles necessários para a conversão de sua unidade em internamente acessível.  Para o caso em que vale a regra dos 3%, as unidades já são concebidas com estas características construtivas.

Confira as principais características construtivas da unidade internamente acessível:

  • Vão livre de passagem das portas;
  • Largura mínima dos corredores;
  • Tratamento de eventuais desníveis no piso no acesso à unidade e em seu interior, incluindo varandas e terraços;
  • Alcance visual adequado de janelas e guarda-corpos;
  • Faixa de altura dos dispositivos de comando (ou altura especificada pelo adquirente);
  • Equipamentos de comunicação (alarme, campainha, interfone), quando disponibilizados no empreendimento;
  • Área de manobra com amplitude mínima de 180°, com permissão para compensação usando o vão da porta;
  • Em pelo menos um dormitório:  área de transferência* em um dos lados da cama;
  • Em pelo menos um banheiro: aproximação frontal ao lavatório, áreas de transferência* para bacia e chuveiro, e previsão de reforço nas paredes para instalação de barras de apoio;
  • Na cozinha e área de serviço:  área de aproximação frontal à pia e áreas de aproximação lateral aos equipamentos, como fogão, geladeira e micro-ondas, entre outros.

(*) área de transferência que permita, no mínimo, o acesso de um módulo de referência.

Reportagem de Luciana Ferreira para a Revista Secovi-SP – A revista do Mercado Imobiliário 304, Outubro/Novembro 2019, pp. 16 a 22. A reprodução é permitida, desde que citada a fonte.

Fonte: Secovi-SP